Liturgia e Vida da Igreja - CNBB

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL

(53ª Assembléia Geral da CNBB - Aparecida, 15 a 24 de abril de 2015)

LITURGIA E VIDA DA IGREJA


Na Assembléia Geral de 2014, refletimos a respeito da arte do presidir. Na busca sincera e permanente de encontrarmos e vivermos a liturgia da forma mais bela e fiel, propomos, desta vez, algumas reflexões e orientações, compartilhando também preocupações sobre o sentido da liturgia para a vida da Igreja. Na fidelidade à Tradição e atentos às exigências da Igreja, é nossa intenção celebrar e viver a liturgia com respiro eclesial, qual ‘sinal e instrumento’ da presença de Jesus que, no Espírito, sustenta a caminhada do Povo de Deus.
No livro O sentido espiritual da liturgia - publicado recentemente pelas Edições CNBB - o monge e liturgista Goffredo Boselli convida para considerar a liturgia não só pelas expressões do celebrar – o que, às vezes, gera divergências em nossa Igreja -, mas, sobretudo, pelas ‘conseqüências práticas’ que ela tem na e para a vida da Igreja. Eis o seu questionamento:
Tem-se, freqüentemente, a impressão de que hoje a liturgia seja percebida mais como um problema a resolver do que como uma fonte da qual haurir. No entanto, o futuro do cristianismo, no ocidente, depende, em grande medida, da capacidade que a Igreja tiver de tornar a sua liturgia a fonte da vida espiritual dos fiéis. Por isso, a liturgia é uma responsabilidade para a Igreja de hoje. Convenço-me sempre mais de que a pergunta decisiva, à qual é necessário dar o mais cedo possível uma resposta, não é antes de tudo como os fiéis vivem a liturgia, mas se eles vivem da liturgia que celebram. O modo como se vive a liturgia depende, em grande medida, do fato de como eles vivem da liturgia. Viver da liturgia que se celebra significa viver daquilo que a liturgia faz viver: o perdão invocado, a Palavra de Deus escutada, a ação de graças elevada, a Eucaristia recebida como comunhão. Se vivem da liturgia, os fiéis a viverão diversamente, porque é ela mesma a ter em si aquelas energias espirituais essenciais para ser fonte da sua vida espiritual[1].

Boa parte dos fiéis tem contato com a Igreja somente na ocasião das celebrações da Eucaristia ou da Palavra e grande número –também de ‘praticantes’ – quase exclusivamente quando participam de casamentos, funerais, batizados e festas de padroeiros. De fato, as celebrações litúrgicas acompanham a vida humana do nascimento até a morte. Para os cristãos católicos, é na liturgia que é doada a vida nova em Cristo (batismo); a força do alto para seguir a Jesus na plenitude do Espírito (crisma) e para viver a própria vocação como serviço por amor (ministério ordenado), ou como amor para o serviço à vida (matrimônio). Com a liturgia os fiéis reerguem-se de suas fragilidades e pecados (penitência), ou são visitados quando a doença ameaça sua vida (unção dos enfermos). Enfim, participando “no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã, (os fiéis) oferecem a Deus a vítima divina e a si mesmos juntamente com ela” (Lumen Gentium – LG - 11), qual perene memorial da obra da salvação de Cristo que, através da Palavra e do Pão, continua doando à Igreja a sua presença. No perene canto de louvor,por sua vez, os cristãos encontram palavras para agradecer ao Pai, a fim de serem em Cristo ‘um só povo em seu amor’[2] (Liturgia das Horas).
A Sacrosanctum Concilium (SC 1) coloca, entre as intenções fundamentais do Concílio, a de “fomentar a vida cristã entre os fiéis e fortalecer o que pode contribuir para chamar a todos ao seio da Igreja”. Ela pede, com insistência, uma constante formação litúrgica (cf. SC 14-19), fundamentada nos mais profundos princípios teológicos (cf. SC nn. 5-7). A Igreja procura constantemente fazer da liturgia a fonte da sua vida espiritual, de modo que, saciados pelos ‘mistérios pascais’, os cristãos vivam ‘unidos no amor’[3] e ‘sejam fiéis na vida a quanto receberam pela fé’[4].

1. A Eclesiologia do Vaticano II e a Liturgia

Abrindo a II Sessão do Concílio Ecumênico Vaticano II, o papa Paulo VI afirmou:
Chegou a hora, parece-nos, em que a verdade no que se refere à Igreja de Cristo deve ser explorada, ordenada e expressa, talvez não com aquelas solenes enunciações que chamamos de definições dogmáticas, mas com aquelas declarações com que a Igreja, com mais explícito e significativo magistério, declara o que ela pensa de si mesma[5].

Com essas palavras, o papa recordava que, para sermos cristãos, não é suficiente uma identidade ‘dogmática’ e jurídica. É preciso, de maneira especial, haurir luzes e orientações dos tesouros da história bíblica e da vida litúrgica, da relação inter-eclesial e com o mundo. As quatro Constituições do Concílio definem esse programa ao estabelecer a necessidade de viver:
- da escuta da Palavra,
- da celebração do culto,
- da relação eclesial,
- da relação com o mundo.
A conversão pastoral – à qual somos chamados – convida-nos para a direção da fidelidade às origens. Para sermos fiéis à Tradição, é preciso ter a coragem de mudar! A Tradição vive de mudança. É como na vida de uma família: as gerações se seguem uma após a outra, com expressões diferentes - o filho não repete o que fazia o pai e, ainda menos, o avô – mas a fidelidade continua numa mesma história familiar[6].
Com a Constituição dogmática Lumen Gentium, a Igreja expressa a compreensão de si mesma e proporciona muitas luzes para que os fiéis entendam e vivam a e da liturgia. Na LG, a Igreja manifesta a consciência de ser o corpo e o sacramento de Cristo, que é a sua Cabeça. Celebrando-o na liturgia, o Mistério pascal se torna presente de forma sacramental, uma vez que “toda a liturgia é uma realidade sacramental”[7]. Mais ainda, com a oração da Igreja, afirma-se que “principalmente no divino Sacrifício da Eucaristia, se exerce a obra de nossa Redenção”[8].

A SC, que deve ser lida à luz do sucessivo ensinamento conciliar,. propõe claras orientações para a reforma da liturgia e da vida da Igreja (n. 2):
A liturgia cada dia edifica em templo santo do Senhor, em tabernáculo de Deus no Espírito, aqueles que nela participam (cf. Ef 2, 21-22), até a medida da idade da plenitude de Cristo (cf. Ef 4,13), ao mesmo tempo em que lhes fortalece para que preguem o Cristo. Dessa forma, a liturgia mostra a Igreja, também aos não cristãos, como sinal levantado entre as nações (cf. Is 11,12), para que sob ele sejam congregados na unidade (cf. Jo 11,52) os filhos de Deus dispersos.
O Concílio Ecumênico Vaticano II, definido pelo papa São João Paulo II como “a grande graça de que se beneficiou a Igreja no século XX” (NMI 57), favoreceu, com sua teologia e com a reflexão que fez amadurecer, a compreensão da Igreja e da liturgia de maneira mais significativa e impulsionou a superação de uma visão de liturgia como cerimônia ou ornamentação ritual. Com esta nova compreensão de liturgia, o Concílio recuperou o respiro da teologia dos Sacramentários e dos Padres da Igreja. Próspero de Aquitânia, secretário do papa Leão Magno, afirmava que a Igreja deve se reconhecer no axioma: ut legem credendi statuat lex suplicandi (= para que a lei do orar defina a lei do crer)[9]. As mudanças apontadas pelo Concílio foram, antes de tudo, na compreensão do que é Liturgia. As modificações ‘visíveis’ dos ritos devem ser entendidas e vividas nesse contexto teológico, eclesial e pastoral mais abrangente. Acolhendo as aquisições do Movimento Litúrgico, o Concílio favoreceu a superação de uma visão de liturgia ‘estático-jurídica’ por uma mais ‘dinâmico-teológica’. Existe, porém, o perigo de voltar atrás e empobrecer a compreensão e, conseqüentemente, a celebração da liturgia mesma, focando a atenção nas cerimônias, ou propondo expressões celebrativas de efeito imediato, mas não alicerçadas na antiga Tradição nem sustentadas por razões de verdadeira inculturação.
A recusa ou a aceitação parcial da liturgia da SC reflete uma interpretação ou – pior! - a recusa tanto da ‘eclesiologia de comunhão’ da Lumen Gentium quanto da diferente ou divergente compreensão dos grandes princípios (da eclesiologia, da liturgia e da espiritualidade) que orientam os documentos do Concílio.
Alguns ‘princípios teológicos’, que alicerçaram as propostas celebrativas, a partir do Concílio Vaticano II, podem ser resumidos nestes termos:
a) Liturgia, momento histórico da salvação. A liturgia é apresentada como momento da História da Salvação, memorial do Mistério pascal e exercício do múnus sacerdotal de Jesus Cristo (cf. SC 7). Isso se dá em duas vertentes: uma descendente, isto é, da condescendência divina que realiza gratuitamente a santificação dos seus filhos e filhas; outra ascendente, isto é, da resposta humana, em Cristo, à ação santificadora de Deus. Assim, ao Pai é dado “o culto público integral pelo Corpo Místico de Cristo, Cabeça e membros” (SC 7). No que se refere à presença de Cristo na Igreja (SC 7), afirma-se decididamente: “Cristo está presente em sua Igreja, sobretudo, nas ações litúrgicas”, e explicitam-se algumas expressões dessa presença[10].
b) “Cristo total”, sujeito da ação litúrgica. Outra ideia - com muitas consequências na prática celebrativa e pastoral - encontra-se na ênfase dada ao sujeito da ação litúrgica, isto é, o Cristo total, Cabeça e Corpo. “Toda celebração litúrgica (é) ação de Cristo sacerdote e do seu corpo, que é a Igreja” (SC 7; cf. SC 26). Significativas são as palavras da Oração Eucarística I (o Cânon romano): “Lembrai-vos, ó Pai, dos vossos filhos e filhas e de todos os que circundam este altar... Eles vos oferecem conosco este sacrifício de louvor... Celebrando, pois, a memória da paixão do vosso Filho... nós vossos servos, e também vosso povo santo, vos oferecemos, ó Pai...”. Sujeito do celebrar, portanto, é a Assembleia reunida como Povo de Deus e Corpo de Cristo! O grande filósofo e teólogo Romano Guardini, em 1918, escrevia: “A liturgia não diz Eu, mas Nós... A liturgia apoia-se não no indivíduo, mas na comunidade dos fiéis”[11].
Em tempos de exagerado subjetivismo, torna-se difícil viver esta dimensão própria da liturgia. A comunhão eclesial é essencial não só para a liturgia, mas para o ser cristão. Entretanto, nela se evidencia de forma mais transparente. O subjetivismo, como também o coletivismo, são inimigos da verdadeira communio evangélica. A liturgia é momento em que se manifesta o ‘ser Igreja’ de Jesus, que o Espírito Santo “leva ao conhecimento da verdade total e a unifica na comunhão e no ministério”[12] (LG 4). Tudo isso, apesar de nossa pobreza e fraqueza.
Para alcançar a comunhão eclesial, os cristãos devem “partir de Jesus Cristo”, como bem apontaram as nossas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil: “Toda ação eclesial brota de Jesus Cristo e se volta para Ele e para o Reino do Pai” (n. 4). Sem entrar em detalhes, a liturgia é chamada a derrubar muros e toda atitude de ‘aristocracia’ espiritual. Quem se aproxima da liturgia se achando ‘dono’ da mesma, desconsiderando as orientações do papa e dos bispos, ou julgando-se ‘melhor’ que os outros, lembre-se do fariseu que foi ao templo para orar (cf. Lc 18,9-14).
Em nossa Igreja, ninguém deveria ter a pretensão de ‘salvar a liturgia’. Ela já é salva pela presença do divino Espírito que, como Jesus garantiu, está sempre com os discípulos (cf. Jo 14,16-17). Na fidelidade à Tradição e pelo discernimento eclesial que compete, antes de tudo, ao Magistério, o depositum fidei é guardado. A esse respeito, a SC 22 afirma:
§ 1. Regular a sagrada Liturgia compete unicamente à autoridade da Igreja, a qual reside na Sé Apostólica e, segundo as normas do direito, no Bispo.
§ 2. Em virtude do poder concedido pelo direito, regular a Liturgia pertence, dentro dos limites estabelecidos, também às competentes assembleias episcopais territoriais, de vário gênero legitimamente constituídas.
§ 3. Por isso, ninguém mais, mesmo que seja sacerdote, ouse, por sua iniciativa, acrescentar, suprimir ou mudar seja o que for em matéria litúrgica.
Portanto, é nossa missão de Pastores, guardar o que recebemos, exercendo as responsabilidades que nos competem, na fidelidade ao espírito do Concílio. Somente pessoas que se unem, em liberdade e humildade, animadas pelo divino Espírito, serão envolvidas no espírito que a liturgia exige e fortalece.

c) Liturgia celeste, Liturgia terrestre. Lembremos, ainda, que a comunidade que se reúne no nome do Senhor, não é grupo de perfeitos, nem a liturgia é expressão plena do que se realizará no céu. A SC 8 diz:
Pela Liturgia da terra participamos, saboreando-a já, da Liturgia celeste, celebrada na cidade santa de Jerusalém, para a qual, como peregrinos nos dirigimos, e onde Cristo está sentado à direita de Deus, ministro do santuário e do verdadeiro tabernáculo (cf. Ap 21,2; Cl 3,1; Hb 8,2).

Toda celebração é como uma pausa de peregrinos que anseiam por aquela plenitude que se realizará no fim dos tempos; então, sim, participaremos da liturgia perene e perfeita.
Concluímos com as palavras do padre Gopegui: “Existe vida cristã porque existe liturgia, ou seja, presença e atualização sacramental do Mistério de Cristo na história. A liturgia é fonte da vida cristã. Vida e celebração não podem estar dissociadas”.

2. A Liturgia é a ação mais eficaz da Igreja

Os ministros ordenados, de maneira especial, devem ter consciência de que as ações sacramentais, que eles presidem em nome de Cristo e da Igreja, são as ações mais eficazes de seu ministério e nenhuma outra atividade tem comparável eficácia. A liturgia há de ser central na vida eclesial e, consequentemente, na vida dos seus ministros. Na liturgia eles se apresentam ao máximo como ministros de Cristo. É preciso, porém, compreender e amadurecer um estilo de vida e de atividade pastoral bem exigentes. Acima de tudo, comporta ‘organizar’ a vida tendo – como lembram SC 10 e LG 11 – a liturgia e a Eucaristia como cume e fonte da própria vida humana e cristã. Toda a atividade pastoral – os encontros com as pessoas, a visita às comunidades e aos doentes, a catequese, a formação e a oração pessoal, a organização da comunidade e as demais atividades que chamamos de pastorais – deve convergir para a celebração da Eucaristia, sobretudo aos domingos.
Nem por isso, quem preside a celebração é o ‘protagonista’ da liturgia. Permanece Jesus Cristo, o Sacerdote principal, e o Espírito que, por meio da Palavra e dos Sacramentos, gera e alimenta a vida de fé dos cristãos. É o Espírito do Senhor quem faz crescer a Igreja e não a agitação das numerosas atividades pastorais. À gratuidade de Deus respondemos com nossa gratidão; nesse sentido, a liturgia é, antes de tudo, expressão do gratuito, do jogo, como costumava dizer Romano Guardini[13].
A liturgia bem vivida não nos afasta da vida ‘real’, mas dela nos aproxima de uma forma própria, diferente daquela do imediato, do convencional e também do interesseiro, sobretudo para com Deus – como observa o papa Bento XVI - do “ser humano (que) se serve de Deus segundo as próprias necessidades e, assim, se coloca, na realidade, acima dele”. “A dança diante do bezerro de ouro é a imagem desse culto que busca a si próprio e se torna uma espécie de banal autossatisfação”[14]. São palavras fortes e uma advertência para que procuremos compreender e viver, de forma mais autêntica – essencial, diria Guardini – a liturgia. Então, ela será o elo de unidade e fonte de amor na vida das Comunidades eclesiais, das Paróquias e Dioceses. Retomando o adágio de Henri de Lubac, podemos dizer, sim, que ‘a Igreja faz a liturgia’, mas também que ‘a liturgia faz a Igreja’. Na liturgia e por meio dela, devemos aprender a gratuidade e a gratidão, elementos essenciais do nosso ser discípulos do Senhor Jesus.

3. Como a Liturgia é chamada a transmitir a fé

Mais de 50 anos se passaram desde o dia 04 de dezembro de 1963, dia em que com 2147 placet (votos a favor) e 4 non placet (votos contrários) os Padres conciliares aprovaram a Constituição Sacrosanctum Concilium. Hoje nos perguntamos: como foi a recepção das orientações do Concílio? Até que ponto, o espírito das reformas entrou no ‘estilo’ do nosso celebrar?
Quem viveu antes do Concílio compreende bem que, em muitos aspectos, nossa Igreja soube rever ritos e gestos que não correspondiam mais à autêntica liturgia romana antiga e fórmulas que não tinham sentido. A compreensão que, hoje em dia, grande parte dos católicos tem da liturgia é bem melhor e, em geral, a participação litúrgica cresceu, como desejava o Concílio (cf. SC 1-2, 10, 14 etc.). Muitas críticas, provindas, sobretudo de quem não viveu antes do Concílio, são fruto de preconceito e, às vezes, expressão de limitado conhecimento da história da liturgia e de sua identidade teológica e espiritual.
Os limites e mesmo os abusos na aplicação das orientações conciliares não justificam oposições e saudosismos. A desejada participação ativa (actuosa) já deu numerosos frutos na vivência eclesial. Reconhecemos, no entanto, que certas aplicações da reforma litúrgica foram realizadas como se bastasse fazer mudanças exteriores, ou usando novos (e mais rumorosos) instrumentos musicais, ou favorecendo as ‘modas’ das épocas e das ‘culturas’. Na atual fase eclesial, com serenidade e maturidade, devemos dar mais um passo. Uma exigência permanente da reforma litúrgica visa a participação da Assembleia celebrante, que seja, sim, ativa, mas no sentido de favorecer, sobretudo, a dimensão interior, para torná-la mais orante e contemplativa, sem cair num superficial intimismo ou no sentimentalismo.
Pastores e mestres devem amadurecer, antes de tudo em si mesmos, e propor modalidades e experiências orantes que ajudem o povo de Deus a viver o que se diz e se faz na ação litúrgica. Ainda o monge Boselli aponta para “uma liturgia mais espiritual e menos convivial. Mais contemplativa e menos festiva. Na qual existam menos palavras e mais Palavra. Menos sinais improvisados e mais significados realizados”. Não se pode identificar participação ativa com a expressão de sentimentos e a manifestação de emoções com encontros que se esgotam no humano (importante, mas não exclusivo). É preciso, ao invés, tornar as celebrações momentos fortes de interiorização, de abertura da alma, de oração e adoração. No término de uma celebração, o fiel deve sair da Igreja com o coração repleto de nova energia interior, que o faça encarar a vida com olhar novo, mais transparente e profundo, e com atitudes de maior harmonia e disponibilidade para amar e servir.
A festa verdadeira é, antes de tudo, interior, silenciosa, calma e sóbria, porque é festa da fé. Isso não significa cair no intimismo nem mortificar a dimensão corpórea nas expressões litúrgicas, mas destacar que só a dimensão interior poderá favorecer o crescimento da alma, a escuta atenciosa e amorosa da Palavra, o diálogo com o Senhor e abertura para captar o que Ele tem a nos dizer.
A SC 48 recomenda que “os fiéis não assistam a este mistério da fé (a Eucaristia) como estranhos ou espectadores mudos”. Ao contrário, pede que, bem compenetrados pelos ritos e pelas orações, participem consciente, piedosa e ativamente da ação sagrada (per ritus et preces id [eucharisticum mysterium] bene intelligentes!). A participação não é só ‘da alma’, mas acontece per ritus et preces, isto é, pela participação ativa, consciente, piedosa da ação litúrgica[15]. A forma ritual (cf. SC 49) assegura a plena compreensão do que acontece na celebração, ligada mais à ação do que ao significado. Nessa perspectiva, é um abuso litúrgico reduzir ao mínimo essencial a forma ritual. Por isso, uma verdadeira celebração deve cuidar da riqueza de todos os elementos da forma. Retorna o convite a cuidar da ‘arte do celebrar’. O papa Bento XVI diz que “o primeiro modo de favorecer a participação do povo de Deus no rito sagrado é a sua condigna celebração; a arte da celebração é a melhor condição para a participação ativa” (Sacramentum Caritatis 38). O papa Francisco observa: “A comunidade evangelizadora jubilosa sabe sempre ‘festejar’... No meio desta exigência diária de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na liturgia. A Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia, que é também celebração da atividade evangelizadora e fonte de um renovado impulso para se dar” (EG 24). Portanto, devemos ter consciência de que a liturgia é uma realidade eclesial que evangeliza por si mesma e alimenta a fé dos fiéis ao longo da vida inteira.
A liturgia cristã pede compreensão. São Paulo escreve (cf. Rm 12,1) que é uma loguiqué latreia, isto é, um culto segundo o Logos / a Palavra. O cristão precisa de alimento sólido, da Palavra e da Eucaristia. Quem frequenta a Comunidade semanalmente e refaz suas forças com esses alimentos, certamente amadurecerá na fé e encontrará o jeito de seguir a Jesus e testemunhá-lo com as obras do amor. Quem ora com a Liturgia das Horas e aprende a santificar o tempo com o cântico de louvor (cantus laudis), também receberá luz suficiente para enfrentar as provações da vida, fortalecido pela consolação do Espírito.
Então, a liturgia do amanhã, que todos nós, hoje, devemos amadurecer e viver, devará dar atenção especial à interiorização dos conteúdos da liturgia, numa atmosfera mais orante e contemplativa. Assim, a liturgia alcançará seu objetivo na vida eclesial e será lugar privilegiado de transmissão da fé. Realizar-se-á o desejo da SC 14: “A liturgia é a primeira e necessária fonte, da qual os fiéis haurem o espírito verdadeiramente cristão”. Na liturgia, nós nascemos para a fé e a alimentamos.

4. Algumas considerações e propostas

Perguntemo-nos, então: como isso poderá acontecer de maneira sempre mais bela e compreensiva, a fim de que os sonhos e votos do Concílio possam se encarnar em nossas Igrejas locais?
a) Na análise dos documentos conciliares e pós-conciliares, como vimos, o ‘ato litúrgico’ ou “celebrativo” não pode ser isolado da vida eclesial e cultural em seu conjunto. O que celebramos tem uma ligação com o cotidiano e a ele conduz. “A liturgia não esgota toda a ação da Igreja” (SC 9). Existe um antes e um depois dela, e “a vida espiritual não se restringe unicamente à participação da sagrada liturgia” (SC 12). Quem celebra é uma pessoa com sua história, que vive num contexto concreto. As Conferências do Episcopado Latino-americano e a sensibilidade de nossa história eclesial apontam para o caminho do testemunho, para a coerência de vida com tudo o que na liturgia celebramos. A pessoa que participa da celebração litúrgica é pessoa ‘concreta’, que vive sua história na História da Salvação com as expressões rituais - ritos e preces - próprias de uma cultura e de uma história eclesial.
b) Em espírito sincero e fraterno, devemos fugir da tentação do protagonismo que, como afirma o monge Enzo Bianchi, “às vezes, assume traços de verdadeiro e autêntico exibicionismo”[16]. Foi observado que a liturgia deve conduzir e não seduzir, isto é, apontar caminhos para Deus e não para si mesmos.

Perguntemo-nos, em atitude de humilde e sincera fidelidade à Igreja, corroborados pela luz do Espírito e fiéis ao Senhor Jesus: tem sentido – como alguns bispos reclamam – que alguns padres exijam o uso do véu para as mulheres ou que todos fiquem ajoelhados para receber a comunhão eucarística? Ou, por outro lado, será que ajuda a participação, pedir que os fiéis orem parte da Oração Eucarística? E, no que se refere aos meios tecnológicos – por exemplo, o data show – será que seu uso melhora a qualidade espiritual e a participação litúrgica?
Essas e outras ‘interpretações’ – sem julgar as boas intenções de quem as faz – deixam-nos perplexos. Precisamos compreender melhor o sentido da liturgia, a fim de que esse momento alto de comunhão eclesial, não gere inúteis tensões e inoportunas divisões, contrárias à comunhão entre os discípulos do Senhor. Estilos celebrativos que não estão de acordo com as orientações dos Rituais da Igreja geram confusão e prejudicam a vivência cristã e o sentido mais autêntico do celebrar, ainda mais quando veiculados e amplificados pelas redes sociais e pela mídia.
a) Pastores e liturgistas têm, ainda, um desafio e um compromisso. Como vimos, a SC deve ser lida e aplicada à luz dos sucessivos documentos conciliares. Então, o espírito do Concílio foi assimilado? Tem crescido entre nós uma visão de Igreja segundo SC, DV, LG e GS? De que modo ajudar, hoje, o povo a entender e viver o Mistério pascal que a Igreja celebra e testemunha?
b) Uma última reflexão. A liturgia - enquanto momento da História da Salvação - usa uma linguagem simbólica, caracterizada pela gratuidade, pela ‘arte’, como um ‘jogo’, na espontaneidade e alegria[17] para ‘estar diante de Deus na gratuidade do amor’. Longe de nós propormos uma liturgia que afaste do testemunho da caridade! Mas, a insistência na dimensão do ‘fazer’ não deve diminuir a dimensão da gratuidade, própria da oração litúrgica. Da História da Salvação que, celebrando, atualizamos, nós não somos os protagonistas, mas, em Cristo, fomos escolhidos para sermos santos e irrepreensíveis diante dele no amor... para louvor e glória da sua graça com a qual ele nos agraciou no Amado (Ef 1,4-6).



[1] BOSELLI, Goffredo. O sentido espiritual da liturgia. Brasília: Edições CNBB, 2014, p. 8.
[2] Oração Eucarística V.
[3] Oração depois da comunhão na Vigília Pascal e no Domingo da Ressurreição.
[4] Oração da missa de terça-feira da Oitava de Páscoa.
[5] PAULO VI, 29/09/1963: Abertura da II sessão do Concílio Vaticano II. O papa Bento XVI, no início de sua I encíclica, Deus Charitas est, escreve: “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”.
[6] Cf. GRILLO, Andrea. Riti che educano. I sette sacramenti. (Ritos que educam. Os sete sacramentos). Assisi: Cittadella editrice, 2011, p. 151 (de próxima tradução nas Ediçoes CNBB).
[7] GOPEGI, Juan A. Ruiz De. Eukharistia. Verdade e caminho da Igreja. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 29. O autor escreve ainda: “É no horizonte sacramental da liturgia que deve ser pensada a relação entre Escritura e rito na liturgia. A Sagrada Escritura é proclamada não somente a modo de ‘edificação’ ou ‘instrução’, mas como evento sacramental constitutivo da liturgia”, p. 29.
[8] Cf. Oração sobre as oferendas do IX Domingo do Tempo Comum. Escreve o teólogo Gopegi: “A fonte da presença divina no mundo através do mistério da Igreja é a ‘exaltação’ do Cristo crucificado à direita do Pai, celebrada na Eucaristia, que constitui a Igreja como Corpo do Senhor ressuscitado. A Eucaristia é, assim, fonte de toda a ação da Igreja, sempre sacramental”: in GOPEGI, op. cit. p. 29.
[9] Cf. GIRAUDO, Cesare. Num só corpo. Tratado mistagógico sobre a Eucaristia. (Tradução do italiano de TABORDA, Francisco). São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 14.
[10] Pode-se conferir a encíclica, do papa PAULO VI, Mysterium Fidei, nn. 35-41; cf. GOPEGI, op. cit. pág. 31-32.
[11] GUARDINI, Romano. O espírito da liturgia (Tradução RIBEIRO F. A., edição particular), p. 43. O autor prossegue: “E isto não significa a soma dos indivíduos, nem a ‘paróquia’ reunida, mas se estende além dos limites do espaço, compreendendo os fiéis de toda a terra. (...) O Eu da oração litúrgica não é a simples soma numérica dos indivíduos de mesma fé. É esse conjunto, enquanto ele constitui uma unidade como tal, independente da multidão que a compõe, ou seja, a Igreja”.
[12] O texto continua: ‘Pela força do Evangelho, o Espírito rejuvenesce a Igreja, renova-a perpetuamente e leva-a à união consumada com seu Esposo’.
[13] Escrevia Romano Guardini: (Na liturgia) “encontra o homem a possibilidade de, levado pela graça, realizar verdadeiramente o seu próprio sentido essencial, ser totalmente o que deve ser, se é fiel à sua destinação divina: um “filho de Deus". Na liturgia, ele poderá, em face de Deus, ‘alegrar-se da sua mocidade’ (Sl 42). Isto é, sem dúvida, algo de sobrenatural, mas justamente por isso, adequado ao mais íntimo de nossa natureza. (...) No sentido mais alto da expressão, ela é como que vida infantil, na qual tudo fosse imagem, dança e canto. Tal é a magnífica realização que a liturgia nos oferece: arte e realidade unidas na infância sobrenatural diante da face de Deus. (...) Mas esta vida tem algo de comum com a da criança e a da arte: é livre de finalidade, embora plena do mais profundo sentido. Não é trabalho, mas jogo. GUARDINI, op. cit. pág. 83-84; cf. RATZINGER, Joseph (BENTO XVI). Introdução ao Espírito da liturgia. São Paulo: Edições Loyola, 2013, pág. 11 segg.
[14] RATZINGER, op. cit., pág. 19: “A história do bezerro de ouro é uma advertência contra um culto realizado segundo o molde pessoal e a busca de si mesmo, em que, finalmente, não está mais em jogo Deus, mas a formação, por iniciativa pessoal, de um pequeno mundo alternativo. A liturgia, então, se torna de fato um jogo vazio. Ou, ainda pior, o abandono do Deus vivo camuflado sob o manto da sacralidade”.

[15] É muito significativo observar a insistência da SC a respeito da necessitade da participação: a SC 11 se fala de participar scienter, actuose et fructuose; n. 14, de participação plena, conscia et actuosa e, ainda, plena et actuosa; n. 19, de novo, actuosa; n. 21, plena, actuosa et communitatis propria celebratione; n. 26, actualis; n. 30, actuosa; n. 48, conscie, pie et actuose; n. 55, perfectior; n. 90, ut mens concordet voci (cf. ainda, n. 59, 114, 121).
[16] BIANCHI, op. cit. p. 99. Continua o autor: “Resultado: já não são levadas em conta as ações de Deus, e os fiéis são levados a receber os gestos litúrgicos como ações que pertencem a quem as cumpre. É o que acontece, infelizmente, quando aquele que preside deixa de ‘ser sinal’, pois de fato seduz (do latim se-ducere: atrair para si), despertando admiração pela pessoa que preside, e assim pervertendo o escopo da liturgia, que consiste em levar para Cristo e, através dele, para Deus Pai, graças à ação do Espírito Santo... Papa Bento XVI escreve: “Recomendo ao clero que aprofunde sempre mais a consciência do próprio ministério eucarístico como humilde serviço a Cristo e à Igreja” (SaCa 23). O mesmo autor denuncia, em seguida, as tentações que chama de hierática (“da qual hoje existe até muita saudade, mas que realmente não passa de certa ‘sacralidade’ fictícia, como vantagem para quem preside, o qual aparece como figura que se destaca em baixo-relevo assírio, como que atingido de síndrome extrapiramidal”) e do esoterismo (“essa tendência a reconhecer o seguinte: quanto menos se compreende o que se diz e se faz, mais se ganha em mistério: é a perniciosa confusão entre mistério e enigma”: ib. pág. 100).
[17] Já destacamos o ensinamento de Romano Guardini. Em sua palestra no Seminário organizado pela CNBB e ASLI, em Itaici - SP (31 de janeiro – 4 de fevereiro de 2012), o prof. Grillo convidava a “resistir à lógica da redução, quer objetivista, quer subjetivista, da experiência de fé, que os ritos preservam, em sua riqueza originária e escatológica”: cf. VVAA. Liturgia Momento Histórico da Salvação (= Coleção 50 anos da Sacrosanctum Concilium, 2). Brasília: Edições CNBB, 2014, p.11.