CARTA ENCÍCLICA MYSTERIUM FIDEI
DE SUA SANTIDADE O PAPA PAULO VI
SOBRE O CULTO DA SAGRADA EUCARISTIA
Veneráveis Irmãos
Introdução
1.Sempre a Igreja Católica
conservou religiosamente, como tesouro preciosíssimo, o mistério inefável da fé
que é o dom da Eucaristia, recebido do seu Esposo, Cristo, como penhor de amor
imenso; a ele tributou, no Concílio Ecumênico Vaticano II, nova e soleníssima
profissão de fé e de culto.
2. Na verdade, tratando da
restauração da Sagrada Liturgia, os Padres do Concílio, pensando no bem da
Igreja universal, tiveram sobretudo a peito exortar os féis a participarem
ativamente, com fé íntegra e com a maior piedade, na celebração deste
sacrossanto Mistério, oferecendo-o a Deus como sacrifício, juntamente com o
sacerdote, pela salvação própria e de todo o mundo, recorrendo a ele para
encontrarem o alimento da alma.
3. Porque, se a Sagrada Liturgia
ocupa o primeiro lugar na vida da Igreja, o Mistério Eucarístico é, podemos
dizer, o coração e o centro da Sagrada Liturgia, constituindo a fonte de vida
que nos purifica e robustece, de modo que já não vivamos para nós mas para
Deus, e nos unamos uns com os outros pelo vínculo mais íntimo da caridade.
4. E para que ficasse bem claro o
nexo indissolúvel entre a fé e a piedade, os Padres do Concílio, confirmando a
doutrina sempre defendida e ensinada pela Igreja e definida solenemente pelo
Concílio de Trento, julgaram dever iniciar a matéria do Sacrossanto Mistério
Eucarístico por esta síntese de verdades: "O nosso Salvador, na última
Ceia, na noite em que foi traído, instituiu o Sacrifício Eucarístico do seu
Corpo e do seu Sangue, para perpetuar o Sacrifício da Cruz pelos séculos afora,
até à sua vinda, deixando deste modo à Igreja, sua dileta Esposa, o memorial da
sua morte e ressurreição: sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de
caridade, banquete pascal, em que se recebe Cristo, se enche a alma de graça e é
dado o penhor da glória futura".(1)
5. Com estas palavras exaltam-se
ao mesmo tempo não só o Sacrifício, que pertence à essência da Missa, que todos
os dias é celebrada, mas também o sacramento, no qual os fiéis comem, pela
sagrada comunhão, a carne de Cristo e bebem o seu Sangue, recebendo assim a
graça, antecipação da vida eterna e "remédio da imortalidade",
segundo as palavras do Senhor: "Quem come a minha carne e bebe o meu
sangue, tem a vida eterna e eu ressuscitá-lo-ei no último dia".(2)
6. Da restauração da Sagrada
Liturgia; esperamos firmemente que hão de brotar frutos copiosos de piedade
eucarística, para que a Igreja santa, elevando este sinal de salvação e
piedade, cada dia mais se aproxime da unidade perfeita (3) e convide para a
unidade da fé e caridade todos quantos se gloriam do nome de cristãos,
atraindoos suavemente sob o impulso da graça divina.
7. Estes frutos parece-nos
entrevê-los e quase contemplar-lhes as primícias, tanto na alegria exuberante e
na prontidão de ânimo, que os alhos da Igreja Católica manifestaram ao receber
a Constituição que restaurou a sagrada Liturgia, como também em muitas e
notáveis publicações, destinadas a investigar melhor e a tornar mais frutuosa a
doutrina da sagrada Eucaristia, essecialmente no tocante à sua relação com o
mistério da Igreja.
8. Tudo isso é motivo, para nós,
de não pequena consolação e alegria. Com muito gosto vo-las queremos comunicar
a vós, Veneráveis Irmãos, para que, juntamente conosco, agradeçais a Deus,
doador de todo o bem, que com o seu Espírito governa a Igreja e a fecunda com
novos graus de virtude.
Motivos de solicitude pastoral e
de ansiedade
9. Não faltam, todavia,
Veneráveis Irmãos, precisamente na matéria de que estamos falando, motivos de
grave solicitude pastoral e de ansiedade. A consciência do nosso dever
apostólico não nos permite passá-los em silêncio.
10. Bem sabemos que, entre os que
falam e escrevem sobre este Sacrossanto Mistério, alguns há que, a respeito das
missas privadas, do dogma da transubstanciação e do culto eucarístico, divulgam
opiniões que perturbam o espírito dos féis, provocando notável confusão quanto
às verdades da fé, como se fosse lícito, a quem quer que seja, passar em
silêncio a doutrina já definida da Igreja ou interpretá-la de tal maneira, que
percam o seu valor o significado genuíno das palavras ou o alcance dos
conceitos.
11. Não é lícito, só para
aduzirmos um exemplo, exaltar a Missa chamada "comunitária", a ponto
de se tirar a sua importância à Missa privada; nem insistir tanto sobre o conceito
de sinal sacramental, como se o simbolismo que todos, é claro, admitimos na
Sagrada Eucaristia, exprimisse, única e simplesmente, o modo da presença de
Cristo neste sacramento; ou ainda discutir sobre o mistério da
Transubstanciação sem mencionar a admirável conversão de toda a substância do
pão no corpo e de toda a substância do vinho no sangue de Cristo, conversão de
que fala o Concílio Tridentino; limitam-se apenas à transignificação e
transfinalização, conforme se exprimem. Nem é lícito, por fim, propor e
generalizar a opinião que afirma não estar presente Nosso Senhor Jesus Cristo
nas hóstias consagradas que sobram, depois da celebração do Sacrifício da
Missa.
12. Quem nâo vê que, em tais
opiniões ou noutras semelhantes postas a correr, sofrem não pouco a fé e o
culto da divina Eucaristia?
13. Do Concílio originou-se a
esperança de vir a percorrer toda a Igreja nova luz de piedade eucarística.
Para que esta luz não sofra e morra com essas sementes já espalhadas de falsas
opiniões, resolvemos dirigir-nos a vós, Veneráveis Irmãos, para vos comunicarmos
com apostólica autoridade o nosso pensamento sobre assunto de tanta
importância.
14. Longe estamos de negar que
exista, naqueles que divulgam tais idéias extravagantes, o desejo incensurável
de perscrutar tão alto Mistério, desentranhando as suas inexauríveis riquezas e
desvelando-lhes o sentido, diante dos homens do nosso tempo. Esse desejo
reconhecemo-lo até como legítimo e aprovamo-lo. O que não quer dizer que
aprovemos as opiniões a que eles conduzem. Do grave perigo que elas representam
para a fé autêntica, sentimos o dever de vos premunir.
A Sagrada Eucaristia é um
mistério de fé
15. Primeiro que tudo, queremos
recordar uma verdade, que muito bem conheceis e é absolutamente necessária no
combate a qualquer veneno de racionalismo. Verdade, que muitos mártires selaram
com o próprio sangue, e célebres Padres e Doutores da Igreja professaram e
ensinaram constantemente. É a seguinte: a Eucaristia é um Mistério altíssimo,
é, propriamente, o Mistério da fé, como se exprime a Sagrada Liturgia: "Nele
só, estão concentradas, com singular riqueza e variedade de milagres, todas as
realidades sobrenaturais", como muito bem diz o nosso predecessor Leão
XIII de feliz memória.(4)
16. Sobretudo deste Mistério é
necessário que nos aproximemos com humilde respeito, não dominados por
pensamentos humanos que devem emudecer, mas atendonos firmemente à Revelação
divina.
17. São João Crisóstomo, que,
como sabeis, tratou com tanta elevação de linguagem e tão iluminada piedade o
Mistério Eucarístico, exprimiu-se nos seguintes termos precisos, ao ensinar aos
seus féis esta verdade: "Inclinemo-nos sempre diante de Deus sem o
contradizermos, embora o que Ele diz possa parecer contrário à nossa razão e à
nossa inteligência; sobre a nossa razão e a nossa inteligência, prevaleça a sua
palavra. Assim nos comportemos também diante do Mistério (Eucarístico), não
considerando só o que nos pode vir dos nossos sentidos, mas conservando-nos
fiéis às suas palavras. Uma palavra sua não pode enganar".(5)
18. Idênticas afirmações encontramos
freqüentemente nos Doutores Escolásticos. Estar presente neste Sacramento o
verdadeiro Corpo e o verdadeiro Sangue de Cristo, "não é coisa que se
possa descobrir com os sentidos, diz Santo Tomás, mas só com a fé, baseada na
autoridade de Deus. Por isso, comentando a passagem de São Lucas, 22,19:
"Isto é o meu corpo que será entregue por vós", diz São Cirilo:
"Não ponhas em dúvida se é ou não verdade, mas aceita com fé as palavras
do Salvador; sendo Ele a Verdade, não mente".(6)
19. Repetindo a expressão do
mesmo Doutor Angélico, assim canta o povo cristão: "Enganam-se em ti a
vista, o tato e o gosto. Com segurança só no ouvido cremos: creio tudo o que
disse o Filho de Deus. Nada é mais verdadeiro do que esta palavra de
verdade".
20. Mais ainda: é São Boaventura
quem afirma: "Estar Cristo no Sacramento como num sinal, nenhuma
dificuldade tem; estar no Sacramento verdadeiramente, como no céu, tem a maior
das dificuldades: é pois sumamente meritório acreditá-lo".(7)
21. O mesmo dá a entender o Evangelho
ao contar que muitos discípulos de Cristo, ao ouvirem falar de comer carne e
beber sangue, voltaram as costas e abandonaram o Senhor, dizendo: Duras são
estas palavras! Quem pode escutá-las? Perguntando então Jesus se também os Doze
se queriam retirar, Pedro afirmou, com decisão e firmeza, a fé sua e a dos
Apóstolos, com esta resposta admirável: "Senhor, a quem iremos? Tens
palavras de vida eterna!" (8)
22. Ao magistério da Igreja
confiou o Redentor divino a palavra de Deus tanto escrita como transmitida
oralmente, para que a guardasse e interpretasse. É esse magistério que devemos
seguir, como estrela orientadora, na investigação desse Mistério, convencidos
de que "embora não esteja ao alcance da razão e embora se não explique com
palavras, continua sempre a ser verdade aquilo que há muito se proclama com a
fé católica genuína e é objeto de crença em toda a Igreja". (9)
23. Ainda não é tudo. Salva a
integridade da fé, é necessário salvar também a maneira exata de falar, não
aconteça que, usando nós palavras ao acaso, entrem no nosso espírito, o que
Deus não permita, idéias falsas como expressão da crença nos mais altos
mistérios. Vem a propósito a advertência de Santo Agostinho sobre o modo
diverso como falam os filósofos e os cristãos: "Os filósofos, escreve o
Santo, falam livremente, sem medo de ferir os ouvidos das pessoas religiosas em
coisas muito difíceis de entender. Nós, porém, devemos falar segundo uma regra
determinada, para evitar que a liberdade de linguagem venha a causar maneiras
de pensar ímpias, mesmo quanto ao sentido das palavras".(10)
24. Donde se conclui que se deve
observar religiosamente a regra de falar, que a Igreja, durante longos séculos
de trabalho, assistida pelo Espírito Santo, estabeleceu e foi confirmando com a
autoridade dos Concílios, regra que, muitas vezes, se veio a tornar sinal e
bandeira da ortodoxia da fé. Ninguém presuma mudá-la, a seu arbítrio ou a
pretexto de nova ciência. Quem há de tolerar que fórmulas dogmáticas, usadas
pelos Concílios Ecumênicos a propósito dos mistérios da Santíssima Trindade e
da Encarnação, sejam acusadas de inadaptação à mentalidade dos nossos
contemporâneos, e outras lhes sejam temerariamente substituídas? Do mesmo modo,
não se pode tolerar quem pretenda expungir, a seu talante, as fórmulas usadas
pelo Concílio Tridentino ao propor a fé no Mistério Eucarístico. Essas
fórmulas, como as outras que a Igreja usa para enunciar os dogmas de fé,
exprimem conceitos que não estão ligados a uma forma de cultura, a determinada
fase do progresso científico, a uma ou outra escola teológica, mas apresentam
aquilo que o espírito humano, na sua experiência universal e necessária, atinge
da realidade, exprimindo-o em termos apropriados e sempre os mesmos, recebidos
da linguagem ou vulgar ou erudita. São, portanto, fórmulas inteligíveis em
todos os tempos e lugares.
25. Pode haver vantagem em
explicar essas fórmulas com maior clareza e em palavras mais acessíveis, nunca,
porém, em sentido diverso daquele em que foram usadas. Progrida a inteligência
da fé, contanto que se mantenha a verdade imutável da fé. O Concílio Vaticano I
ensina que nos dogmas "se deve conservar perpetuamente aquele sentido que,
duma vez para sempre, declarou a Santa Madre Igreja, e que nunca é lícito
afastarmo-nos desse sentido, pretextando e invocando maior
penetração".(11)
O Mistério Eucarístico realiza-se
no Sacrifício da Missa
26. Para comum edificação e
conforto, apraz-nos, Veneráveis Irmãos, recordar a doutrina que a Igreja
Católica recebeu da tradição e ensina com consenso unânime.
27. Convém recordar primeiramente
aquilo que é, por assim dizer, a síntese e o ponto mais sublime desta doutrina:
que no Mistério Eucarístico é representado de modo admirável o Sacrifício da
Cruz, consumado uma vez para sempre no Calvário; e que nele se relembra
perenemente a sua eficácia salutar na remissão dos pecados que todos os dias
cometemos.(l2)
28. Nosso Senhor Jesus Cristo, ao
instituir o Mistério Eucarístico, sancionou com o seu sangue o Novo Testamento
de que é Mediador, do mesmo modo que Moisés sancionara o Velho com o sangue dos
vitelos. (l3) Segundo contam os Evangelistas, na última Ceia, "tomou um
pão, deu graças, partiu e distribui-o a eles, dizendo, 'isto é o meu corpo que
é dado por vós. Fazei isto em minha memória'. E, depois de comer, fez o mesmo
com o cálice, dizendo: 'Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue, que é derramado
em favor de vós"'(14). E mandando aos Apóstolos que fizessem isto em sua
memória, mostrou a vontade de que este Mistério se renovasse. Na realidade, foi
o que a Igreja primitiva realizou fielmente, perseverando na doutrina dos
Apóstolos e reunindo-se para celebrar o Sacrifício Eucarístico. Como testemunha
São Lucas, "eles mostravam-se assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à
comunhão fraterna, à fração do pão e às orações".(15) E assim, chegavam a
tal fervor, que deles se podia dizer: "A multidão dos que haviam crido era
um só o coração e uma só a alma".(16)
29. O Apóstolo São Paulo, que com
toda a fidelidade nos transmitiu aquilo que recebera do Senhor, (17) fala
claramente do sacrifício eucarístico, ao mostrar que os cristãos não podem
tomar parte nos sacrifícios dos pagãos, exatamente porque já participavam da
mesa do Senhor. Assim se exprime: "O cálice de bênção que abençoamos não é
comunhão com o Sangue de Cristo? O pão que partimos não é comunhão com o Corpo
de Cristo?... Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios. Não
podeis participar da mesa do Senhor e da mesa dos demônios. (18) Esta nova
oblação do Novo Testamento, que Malaquias profetizara, (l9) sempre a ofereceu a
Igreja, ensinada pelo Senhor e pelos Apóstolos, "não só pelos pecados,
penas, expiações e outras necessidades dos fiéis vivos, mas também em sufrágio
dos defuntos em Cristo, ainda não de todo purificados".(20)
30. Passando em silêncio outros
testemunhos, queremos recordar apenas o de São Cirilo de Jerusalém. Instruindo
os neófitos na fé cristã, pronunciou estas palavras memoráveis: "Depois de
terminado o sacrifício espiritual, rito incruento, pedimos a Deus, sobre esta
hóstia de propiciação, pela paz universal da Igreja, pela justa ordem do mundo,
pelos imperadores, pelos nossos soldados e pelos aliados, pelos doentes, pelos
aflitos, e todos nós rogamos por todos, em geral, quantos precisam de ajuda;
oferecemos esta vítima... e depois recomendamos também os santos padres e
bispos, e em conjunto todos os nossos defuntos, convencidos como estamos que
esta será a maior ajuda para as almas, por quem se oferece a oração, enquanto
está presente a Vítima santa que infunde o maior respeito". Confirmando o
fato com o exemplo da coroa, que se tece ao imperador, para que ele conceda
perdão aos exilados, o mesmo santo Doutor conclui: "Do mesmo modo também
nós, oferecendo orações a Deus pelos defuntos, mesmo pecadores, não lhe tecemos
uma coroa, mas oferecemos-lhe Cristo imolado pelos nossos pecados, procurando
conciliar a clemência de Deus em nosso favor e em favor deles".(21) Este
costume, de oferecer "o sacrifício do nosso preço" também pelos
defuntos, vigorava na Igreja Romana, como testemunha Santo Agostinho, (22) que
declara ser, além disso, observado por toda a Igreja, como herança recebida dos
Padres.(23)
31. Mas há outra coisa, que nos
apraz acrescentar, por ser muito útil para aclarar o Mistério da Igreja:
desempenhando esta, em união com Cristo, as funções de sacerdote e de vítima, é
ela toda que oferece o Sacrifício da Missa, como também ela toda é oferecida no
mesmo. Admirável doutrina, já ensinada pelos Padres, (24) exposta recentemente
pelo nosso predecessor Pio XII de feliz memória, (25) que foi expressa
ultimamente pelo Concílio Ecumênico Vaticano II na Constituição De Ecclesia, ao
tratar do povo de Deus. (26) Muito desejamos que seja cada vez mais explicada e
mais profundamente inculcada no ânimo dos féis, salva contudo a justa
distinção, não só de grau, mas também de essência, entre o sacerdócio dos féis
e o sacerdócio hierárquico.(27) Muito ajudou esta doutrina a alimentar a
piedade eucarística e a tornar conhecida a dignidade de todos os féis, e não
menos a estimular a alma para que suba até à mais alta santidade. Esta não
consiste senão em pormo-nos inteiramente ao serviço da divina Majestade, com
generosa oblação de nós mesmos.
32. E necessário recordar ainda a
conclusão, que deriva desta doutrina, acerca da "natureza pública e social
de toda e qualquer Missa".(28) Toda a Missa, ainda que celebrada
privadamente por um sacerdote, não é ação privada, mas ação de Cristo e da
Igreja. Esta, no sacrifício que oferece, aprende a oferecer-se a si mesma como
sacrifício universal, e aplica, pela salvação do mundo inteiro, a única e
infinita eficácia redentora do Sacrifício da Cruz. Na realidade qualquer Missa
celebrada oferece-se não apenas pela salvação de alguns mas pela salvação do
mundo inteiro. Donde se conclui: se muito convém que à celebração da Missa,
quase por sua natureza, participe ativamente grande número de fiéis, não se
deve condenar, mas sim aprovar, a Missa que um sacerdote, por justa causa e
segundo as prescrições e tradições legítimas da Santa Igreja, reza
privadamente, embora haja apenas um acólito para ajudar e responder; de tal
Missa deriva grande abundância de graças particulares, para bem tanto do
sacerdote, como do povo fiel e de toda a Igreja, e mesmo do mundo inteiro;
graças estas, que não se obtêm em igual medida só por meio da sagrada Comunhão.
33. Os sacerdotes, que são mais
que ninguém a nossa alegria e a nossa coroa no Senhor, lembram-se do poder que
receberam do Bispo ordenante para oferecer a Deus o Sacrifício e celebrar
Missas tanto pelos vivos como pelos defuntos no nome do Senhor.(29)
Recomendamos-lhes com paternal insistência que celebrem todos os dias com
dignidade e devoção, a fim de que, eles mesmos e os outros cristãos em geral,
beneficiem da aplicação dos frutos copiosos que provêm do Sacrifício da Cruz.
Deste modo, contribuirão muito para a salvação do gênero humano.
No sacrifício da missa Cristo
torna-se presente sacramentalmente
34. O pouco, que a propósito do
Sacrifício da Missa expusemos, leva-nos a dizer também alguma coisa do
Sacramento da Eucaristia. Um e outro, Sacrifício e Sacramento, fazem parte do
mesmo Mistério, tanto que não é possível separar um do outro. O Senhor imola-se
de modo incruento no Sacrifício da Missa, que representa o Sacrifício da Cruz e
lhe aplica a eficácia salutar, no momento em que, pelas palavras da
consagração, começa a estar sacramentalmente presente, como alimento espiritual
dos féis, sob as espécies de pão e de vinho.
35. Bem sabemos todos que vários
são os modos da presença de Cristo na sua Igreja. Esta verdade muito
consoladora, que a Constituição da Sagrada Liturgia expôs brevemente,(30) é
útil que a lembremos com mais demora. Cristo está presente à sua Igreja
enquanto esta ora, sendo Ele quem "roga por nós, roga em nós e por nós é
rogado; roga por nós como nosso Sacerdote; roga em nós como nossa Cabeça; é
rogado por nós como nosso Deus".(31) Ele mesmo prometeu: "Onde dois
ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles".(32)
Ele está presente à sua Igreja enquanto ela pratica as obras de misericórdia;
isto não só porque, quando nós fazemos algum bem a um dos seus irmãos mais
humildes, o fazemos ao mesmo Cristo, (33) mas também porque Cristo é quem faz
estas obras por meio da sua Igreja, não deixando nunca de socorrer os homens
com a sua divina caridade. Está presente à sua Igreja enquanto esta peregrina e
anseia por chegar ao porto da vida eterna: habita nos nossos corações por meio
da fé,(34) e neles difunde a caridade por meio da ação do Espírito Santo, que
nos dá.(35)
36. De outro modo, também
verdadeiríssimo, Cristo está presente à sua Igreja enquanto ela prega, sendo o
Evangelho, assim anunciado, Palavra de Deus, que é anunciada em nome de Cristo,
Verbo de Deus Encarnado, e com a sua autoridade e assistência, para que haja
"um só rebanho, cuja segurança virá de ser um só o pastor".(36)
37. Está presente à sua Igreja,
enquanto esta dirige e governa o povo de Deus, porque de Cristo deriva o poder
sagrado, e Cristo, "Pastor dos Pastores", assiste os Pastores que o
exercem,(37) segundo a promessa feita aos Apóstolos: "Eu estarei convosco
todos os dias, até a consumação dos séculos".(38)
38. Além disso, de modo ainda
mais sublime, está Cristo presente à sua Igreja enquanto esta, em seu nome,
celebra o Sacrifício da Missa e administra os Sacramentos. Quanto à presença de
Cristo na oferta do Sacrifício da Missa, apraz-nos recordar o que São João
Crisóstomo, cheio de admiração, diz com verdade e eloqüência: "Quero
acrescentar uma coisa verdadeiramente estupenda, mas não vos espanteis nem vos
perturbeis. Que coisa é? A oblação é a mesma, seja quem for o oferente,
chame-se ele Pedro ou Paulo; é a mesma que Jesus Cristo confiou aos discípulos
e agora realizam os sacerdotes: esta última não é menor que a primeira, porque
não são os homens que a tornam santa, mas Aquele que a santificou. Como as
palavras pronunciadas por Deus são exatamente as mesmas que agora diz o
sacerdote, assim a oblação é também a mesma".(39)
39. E ninguém ignora serem os
Sacramentos ações de Cristo, que os administra por meio dos homens. Por isso,
são santos por si mesmos e, quando tocam nos corpos, infundem, por virtude de
Cristo, a graça nas almas.
40. Estas várias maneiras de
presença enchem o espírito de assombro e levam-nos a contemplar o Mistério da
Igreja. Outra é, contudo, e verdadeiramente sublime, a presença de Cristo na
sua Igreja pelo Sacramento da Eucaristia. Por causa dela, é este Sacramento,
comparado com os outros, "mais suave para a devoção, mais belo para a
inteligência, mais santo pelo que encerra";(40) contém, de fato, o próprio
Cristo e é "como que a perfeição da vida espiritual e o fim de todos os
Sacramentos".(41)
41. Esta presença chama-se
"real", não por exclusão como se as outras não fossem
"reais", mas por antonomásia porque é substancial, quer dizer, por
ela está presente, de fato, Cristo completo, Deus e homem.(42) Erro seria,
portanto, explicar esta maneira de presença imaginando uma natureza "pneumática",
como lhe chamam, do corpo de Cristo, natureza esta que estaria presente em toda
a parte; ou reduzindo a presença a puro simbolismo, como se tão augusto
Sacramento consistisse apenas num sinal eficaz "da presença espiritual de
Cristo e da sua íntima união com os féis, membros do Corpo Místico".(43)
42. E certo que do simbolismo
eucarístico, especialmente em relação com a unidade da Igreja, muito trataram
os Padres e os Doutores Escolásticos, cuja doutrina resumiu o Concílio de
Trento, ensinando que o nosso Salvador deixou a Eucaristia à sua Igreja
"como símbolo... da unidade desta e da caridade que Ele quis unisse
intimamente todos os cristãos uns com os outros", "mais ainda, como
símbolo daquele corpo único, de que Ele é a Cabeça".(44)
43. Logo nos primórdios da literatura
cristã, assim escrevia o autor desconhecido da "Didaquê ou Doutrina dos
doze Apóstolos": "Quanto à Eucaristia, dai graças deste modo: ...como
este pão, agora partido, estava antes disperso pelos montes, mas, ao ser
reunido, se tornou um só, do mesmo modo se reúna a tua Igreja, dos confins da
terra, no teu reino".(45)
44. Escreve igualmente São
Cipriano, ao defender a unidade da Igreja contra o cisma: "Por fim, os
mesmos Sacrifícios do Senhor põem em evidência a unanimidade dos cristãos,
cimentada em caridade firme e indivisível. Pois, quando o Senhor chama seu
Corpo ao pão, composto de muitos grãos juntos, indica o nosso povo reunido, por
Ele sustentado; e quando chama seu Sangue ao vinho, espremido de muitos cachos
e bagos, reduzidos à unidade, indica de maneira semelhante o nosso rebanho,
composto de uma multidão reduzida à unidade".(46)
45. Antes que ninguém, já o
dissera oApóstolo São Paulo, dirigindo-se aos coríntios: "Nós, embora
muitos, somos um só corpo, visto que todos participamos desse único
pão".(47)
46. O simbolismo eucarístico, se
nos faz compreender bem o efeito próprio do Sacramento, que é a unidade do
Corpo Místico, não explica todavia nem exprime a natureza que distingue este
Sacramento dos outros. A instrução dada constantemente pela Igreja aos
catecúmenos, o sentido do povo cristão, a doutrina definida pelo Concílio
Tridentino e as mesmas palavras que usou Cristo, ao instituir a sagrada
Eucaristia, vão mais longe: obrigam-nos a professar "que a Eucaristia é a
Carne do nosso Salvador Jesus Cristo, a qual sofreu pelos nossos pecados e foi
ressuscitada pelo Pai na sua benignidade".(48) Às palavras do mártir Santo
Inácio apraz-nos acrescentar as de Teodoro de Mopsuéstia, neste particular
testemunha fiel da crença da Igreja: "O Senhor não disse: Isto é o símbolo
do meu Corpo e isto é o símbolo do meu Sangue, mas, Isto é o meu Corpo e o meu
Sangue, ensinando-nos a não considerar a natureza visível que os sentidos
atingem, mas a (crer) que ela pela ação da graça se mudou em carne e sangue".(49)
47. 0 Concílio Tridentino,
baseando-se nesta fé da Igreja, "afirma clara e simplesmente que, no
augusto Sacramento da santa Eucaristia, depois da consagração do pão e do
vinho, Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, está presente
verdadeira, real e substancialmente, sob a aparência destas realidades
sensíveis". Portanto, o nosso Salvador, está presente com a sua humanidade
não só à direita do Pai, segundo o modo de existir natural, mas também no
Sacramento da Eucaristia "segundo um modo de existir, que nós, com
palavras mal conseguimos exprimir, mas com a inteligência iluminada pela fé
podemos reconhecer como possível a Deus, e que devemos aceitar firmissimamente
como real".(50)
Cristo Senhor está presente no
Sacramento da Eucaristia pela transubstanciação
48. Todavia, para que ninguém
entenda mal este modo de presença que supera as leis da natureza e constitui no
seu gênero o maior dos milagres,(51) é necessário escutar com docilidade a voz
da Igreja docente e orante. Esta voz, que repete continuamente a voz de Cristo,
ensina-nos que neste Sacramento Cristo se torna presente pela conversão de toda
a substância do pão no seu Corpo e de toda a substância do vinho no seu Sangue;
conversão admirável e sem paralelo, que a Igreja Católica chama, com razão e
propriedade, "transubstanciação".(52) Depois da transubstanciação as
espécies do pão e do vinho tomam nova significação e nova finalidade, deixando
de pertencer a um pão usual e a uma bebida usual, para se tornarem sinal de
coisa sagrada e sinal de alimento espiritual; mas só adquirem nova significação
e nova finalidade por conterem nova "realidade", a que chamamos com
razão "ontológica". Com efeito, sob as ditas espécies já não há o que
havia anteriormente, mas outra coisa completamente diversa: isto não só porque
assim julga a fé da Igreja, mas porque é uma realidade objetiva, pois,
convertida a substância ou natureza do pão e do vinho, no Corpo e no Sangue de
Cristo, nada fica do pão e do vinho, além das espécies; debaixo destas, está
Cristo completo, presente na sua "realidade" física, mesmo
corporalmente, se bem que não do mesmo modo como os corpos se encontram
presentes localmente.
49. Por isso, tanto recomendaram
os Santos Padres que os fiéis, ao considerarem este augustíssimo Sacramento,
não se fiassem nos sentidos, que testemunham as propriedades do pão e do vinho,
mas sim nas palavras de Cristo, que têm poder de mudar, transformar e
"transubstanciar" o pão e o vinho no seu Corpo e Sangue; na verdade,
como repetem os mesmos Padres, a força que opera este prodígio é a própria
força de Deus Onipotente, que no princípio do tempo criou do nada todo o
universo.
50. Diz São Cirilo de Jerusalém,
ao concluir o discurso acerca dos Mistérios da fé: "Assim instruído e
acreditando com a maior certeza que aquilo que parece pão não é pão, apesar do
sabor que tem, mas sim o Corpo de Cristo; e que o que parece vinho não é vinho,
apesar de assim parecer ao gosto, mas sim o Sangue de Cristo... tu fortalece o
teu coração, comendo aquele pão como coisa espiritual, e alegra a face da tua
alma".(53)
51. Insiste São João Crisóstomo:
"Quem faz que as coisas oferecidas se tornem o Corpo e o Sangue de Cristo
não é o homem, é Cristo que foi crucificado por nós. Como representante,
pronuncia o sacerdote as palavras rituais; a eficácia e a graça vêm de Deus.
Diz 'isto é o meu Corpo:' esta palavra transforma as coisas
oferecidas".(54)
52. E com o celebérrimo Bispo de
Constantinopla está em perfeito acordo Cirilo, Bispo de Alexandria, ao escrever
no comentário ao Evangelho de São Mateus: "(Cristo) afirmou de maneira
categórica 'isto é o meu Corpo e isto é o meu Sangue' não vás tu julgar que as
realidades visíveis são figura, mas fiques sabendo que Deus Onipotente
transforma, de modo misterioso, algumas das coisas oferecidas, no Corpo e no
Sangue de Cristo; quando destes participamos, recebemos a força vivificante e
santificadora de Cristo".(55)
53. O Bispo de Milão, Santo
Ambrósio, assim descreve a conversão eucarística: "Persuadamo-nos que já
não temos o que a natureza formou, mas o que a bênção consagrou; e que a força
da bênção é maior que a força da natureza, porque a bênção, muda até a natureza".
E querendo confirmar a verdade do Mistério, exemplifica com muitos milagres
contados na Sagrada Escritura, como Jesus que nasce da Virgem Maria, e depois,
passando a falar da obra da criação, assim conclui: "A palavra de Cristo,
que pode fazer do nada aquilo que não existia, não poderá mudar as coisas que
existem naquilo que não eram? Criar coisas não é menos que mudá-las".(56)
54. Mas não é necessário
multiplicar testemunhos. Mais útil será recordar a firmeza da fé que mostrou a
Igreja, ao resistir muito unânime a Berengário. Levado pelas dificuldades que
sugere a razão humana, foi ele quem primeiro se atreveu a negar a conversão
eucarística; a Igreja condenou-o repetidamente, se não se retratasse. Gregório
VII, nosso predecessor, obrigou-o a prestar um juramento nestes termos:
"Creio de coração e confesso de palavra que o pão e o vinho, colocados
sobre o altar, se convertem substancialmente, pelo mistério da oração sagrada e
das palavras do nosso Redentor, na verdadeira, própria e vivificante Carne e no
Sangue de nosso Senhor Jesus Cristo; e que, depois de consagrados, são o
verdadeiro Corpo de Cristo, que nascido da Virgem e oferecido pela salvação do
mundo, esteve suspendido na Cruz e agora está assentado à direita do Pai; como
também o verdadeiro Sangue de Cristo, que saiu do seu peito. Não está Cristo
somente como figura e virtude do Sacramento, mas também na propriedade da
natureza e na realidade da substância".(57)
55. Com estas palavras concordam
(admirável exemplo da firmeza da fé católica!) os Concílios Ecumênicos de
Latrão, de Constança, de Florença e, por fim, de Trento, naquilo que
constantemente ensinaram acerca do mistério da conversão eucarística, quer
expusessem a doutrina da Igreja quer condenassem erros.
56. Depois do Concílio Tridentino,
o nosso predecessor Pio VI, opondo-se aos erros do Sínodo de Pistóia,
recomendou seriamente aos párocos, encarregados de ensinar, que não deixassem
de falar da transubstanciação, que figura entre os artigos da fé.(58) Na mesma
linha, o nosso predecessor Pio XII, de feliz memória, recordou quais são os
limites que não devem ultrapassar aqueles que aprofundam o Mistério da
transubstanciação.(59) E nós mesmos no recente Congresso Eucarístico Nacional
italiano, realizado em Pisa, demos, em obediência ao nosso dever apostólico,
testemunho público e solene da fé da Igreja.(60)
57. Esta mesma Igreja não só
ensinou mas viveu a fé na presença do Corpo e do Sangue de Cristo na
Eucaristia, adorando sempre tão grande Sacramento com culto latrêutico, que só
a Deus compete. Deste culto escreve Santo Agostinho: "A mesma carne, com
que andou (o Senhor) na terra, essa mesma nos deu a comer para nossa salvação;
ninguém come aquela Carne sem primeiro a adorar...; não só não pecamos
adorando-a, mas pecaríamos se a não adorássemos".(61)
O culto latrêutico devido ao
Sacramento Eucarístico
58. Este culto latrêutico devido
ao Sacramento Eucarístico, professou-o e professa-o a Igreja Católica, não só
durante a Missa mas também fora dela, conservando com o maior cuidado as hóstias
consagradas, expondo-as à solene veneração dos fiéis, e levando-as em procissão
vitoriadas por grandes multidões.
59. Temos muitos testemunhos
desta veneração nos antigos documentos eclesiásticos. Sempre os Pastores da
Igreja exortaram os fiéis a conservar com o maior respeito a Eucaristia que
levavam para casa. "O Corpo de Cristo é para se comer e não para se
desprezar", lembrava judiciosamente Santo Hipólito.(62)
60. Os fiéis julgavam-se culpados
e com razão, conforme lembra Orígenes, se, recebendo o Corpo do Senhor e
conservando-o com a maior cautela e veneração, apesar disso deixavam cair algum
fragmento.(63)
61. E que os Pastores reprovavam
energicamente qualquer falta da reverência devida, mostra-o Novaciano (nisto
digno de fé), o qual julga merecedor de condenação aquele que, "saindo da
celebração dominical e levando ainda consigo a Eucaristia, como é costume...,
fez dar voltas ao santo Corpo do Senhor", não se dirigindo logo para casa
mas correndo aos espetáculos.(64)
62. Mais ainda, São Cirilo de
Alexandria rejeita como loucura a opinião dos que afirmavam que, para nos
santificarmos, nada serve a Eucaristia no caso de haver apenas algum resto
conservado do dia anterior. Assim escreve: "Nem se altera Cristo, nem se
muda o seu santo Corpo; perseveram sempre nele a força e o poder de bênção, e a
graça constante que vivifica".(65)
63. Nem devemos esquecer que
antigamente os fiéis, quer se encontrassem sujeitos à violência da perseguição,
quer vivessem no ermo por amor da vida monástica, costumavam alimentar-se mesmo
diariamente da Eucaristia, tomando a sagrada comunhão com as próprias mãos, no
caso de faltar um sacerdote ou diácono.(66)
64. Isto não o dizemos para que
se altere, seja no que for, o modo de conservar a Eucaristia ou de receber a sagrada
comunhão, segundo foi estabelecido mais tarde pelas leis eclesiásticas ainda em
vigor, mas somente para todos juntos nos alegrarmos por ser sempre a mesma a fé
da Igreja.
65. Desta fé única nasceu a festa
do Corpo de Deus, celebrada pela primeira vez na diocese de Liège, graças
sobretudo aos esforços da Beata Juliana de Mont Cornillon, festa que o nosso
predecessor Urbano IV estendeu a toda a Igreja; e nasceram igualmente muitas
outras instituições de piedade eucarística, que por inspiração da graça divina
multiplicaram-se sempre mais, e com as quais, quase à porfia, se empenha a
Igreja Católica quer em honrar a Cristo, quer em lhe dar graças por dádiva tão
extraordinária, quer em implorar a sua misericórdia.
Exortação para que se promova o
culto eucarístico
67. Consiga a vossa insistência
que os féis conheçam cada vez melhor e experimentem em si mesmos o que diz
Santo Agostinho: "Quem quer viver, tem onde viva e donde viva:
aproxime-se, creia, incorpore-se na Igreja, para ser vivificado. Não renuncie à
união com os outros membros, não seja membro podre a merecer ser cortado, não
passe pela vergonha de ser membro aleijado: seja membro belo, perfeito e são;
conserve-se ligado ao corpo, viva para Deus e de Deus; trabalhe agora na terra,
para depois reinar no céu".(67)
68. Como é desejável, participem
os fiéis ativamente, cada dia e em grande número, no Sacrifício da Missa, vindo
alimentar-se da sagrada Comunhão, com intenção pura e santa, e dando graças a
Cristo Senhor Nosso por tão grande dom. Recordem-se destas palavras: "O desejo
de Jesus Cristo e da Igreja, de que todos os fiéis se aproximem quotidianamente
da sagrada mesa, consiste sobretudo nisto: em que os féis, unindo-se a Deus
pelo Sacramento, dele recebam força para dominar a concupiscência, lavar as
culpas leves quotidianas, e prevenir as faltas graves a que está sujeita a
fragilidade humana".(68) Durante o dia, não deixem de visitar o Santíssimo
Sacramento, que se deve conservar nas igrejas no lugar mais digno, e com máxima
honra, segundo as leis litúrgicas; cada visita é prova de gratidão, sinal de
amor e dever de adoração a Cristo Senhor nosso, ali presente.
69. Quem não vê que a divina
Eucaristia confere ao povo cristão dignidade incomparável? Cristo é
verdadeiramente "Emmanuel", isto é, "o Deus conosco", não
só durante a oferta do Sacrifício e realização do Sacramento, mas também
depois, enquanto a Eucaristia se conserva em igrejas ou oratórios. Dia e noite,
está no meio de nós, habita conosco, cheio de graça e de verdade: (69) morigera
os costumes, alimenta as virtudes, consola os aflitos, fortifica os fracos;
atrai à sua imitação quantos dele se abeiram, para que aprendam com o seu
exemplo a ser mansos e humildes de coração, e a procurar não os seus interesses
mas os de Deus. Todos os que dedicam particular devoção ao augusto Sacramento
eucarístico e se esforçam por corresponder com prontidão e generosidade ao amor
infinito de Cristo por nós, todos esses experimentam e se alegram de
compreender quanto é útil e preciosa a vida oculta com Cristo em Deus(70) e
quanto importa que o homem se demore a falar com Cristo. Nada há mais suave na
terra, nada mais eficaz para nos conduzir pelos caminhos da santidade.
70. Bem sabeis também, Veneráveis
Irmãos, que a Eucaristia se conserva nos templos e oratórios como centro
espiritual de comunidades, ou religiosas ou paroquiais; mais ainda, como centro
da Igreja universal e da humanidade inteira, porque, debaixo do véu das
sagradas espécies, está Cristo, Cabeça invisível da Igreja, Redentor do mundo,
Centro de todos os corações: "por quem tudo existe e por quem nós
somos".(71)
71. Donde se segue que o culto
eucarístico promove muito nas almas o amor "social",(72) que nos leva
a antepor o bem comum ao bem particular, a fazer nossa a causa da comunidade,
da paróquia e da Igreja universal, e a dilatarmos a caridade até abraçarmos o
mundo inteiro; sabemos que em toda a parte há membros de Cristo.
72. Como, Veneráveis Irmãos, o
Sacramento eucarístico é sinal e causa da comunidade do Corpo Místico, e produz
nas pessoas mais fervorosas um espírito eclesial ativo, não deixeis nunca de
persuadir os vossos fiéis a que, aproximando-se do Mistério eucarístico,
aprendam a tomar como própria a causa da Igreja, a dirigir-se a Deus sem
descanso, a oferecer-se a si mesmos ao Senhor, como sacrificio agradável, pela
paz e unidade da Igreja; a fim de que todos os filhos da Igreja sejam uma só
coisa e tenham um mesmo sentimento, nem haja entre eles divisões, mas sejam
perfeitos num mesmo espírito e mentalidade, como manda o Apóstolo;(73) e também
para que todos aqueles que não estão ainda perfeitamente unidos à Igreja
Católica, mas, embora dela separados, se gloriam do nome de cristãos, cheguem
quanto antes a gozar conosco, pela graça divina, aquela unidade de fé e de
comunhão, que Jesus Cristo deseja constitua sinal distintivo dos seus
discípulos.
73. O desejo de orar e de
consagrar-se a Deus pela unidade da Igreja, devem sobretudo os religiosos e
religiosas considerá-lo como muito próprio, dada a vocação particular que têm
de adorar o Santíssimo Sacramento e formar-lhe coroa na terra, como pedem os
votos que pronunciaram.
74. Todavia, os anelos da unidade
de todos os cristãos, tudo quanto há de mais profundo e suave no coração da
Igreja, queremos nós exprimi-los mais uma vez, usando as mesmas palavras do Concílio
Tridentino na conclusão do Decreto sobre a Sagrada Eucaristia: "Por
último, no seu afeto paternal, o Sagrado Sínodo adverte, exorta, pede e roga,
'pelas entranhas da misericórdia de nosso Deus',(74) que todos e cada um dos
cristãos acabem já agora por se reunir e concordar neste 'sinal da unidade',
neste 'vínculo da caridade', neste símbolo de concórdia; e que, lembrados da
grande majestade e do tão alto amor de nosso Senhor Jesus Cristo, que deu a sua
dileta alma como preço da nossa salvação e deu a 'sua carne como alimento',(75)
creiam e venerem estes sagrados mistérios de seu Corpo e Sangue com tal
constância e firmeza de fé, com tal devoção, piedade e culto, que possam
receber freqüentemente aquele Pão supersubstancial.(76) Deveras seja para eles
vida verdadeira da alma e saúde perene do espírito, tanto que, 'robustecidos
pelo seu vigor',(77) possam da miserável peregrinação da terra passar à pátria
celeste, onde sem nenhum véu venham a comer o mesmo 'Pão dos Anjos'(78) que
presentemente comem oculto por sagrados véus".(79)
75. O nosso bondosíssimo
Redentor, pouco antes da morte, pediu ao Pai que todos aqueles, que viessem a
crer n'Ele, se tornassem uma só coisa, como Ele e o Pai são uma coisa só.(80)
Oxalá que Ele se digne ouvir, quanto antes, este voto, que é também Nosso e da
Igreja inteira, para que todos celebremos, com uma voz e uma fé únicas, o
Mistério Eucarístico, e, tornados participantes do Corpo de Cristo, formemos um
só corpo,(81) unido com os mesmos vínculos que Ele determinou.
76. E dirigimo-nos com paternal
amor também aos que pertencem às Veneráveis Igrejas do Oriente, nas quais
floreceram tantos e tão célebres Padres, cujos testemunhos, a respeito da
Eucaristia, recordamos com tanto gosto na presente Carta. Enorme alegria nos
invade, quando recordamos a vossa fé a respeito da Eucaristia, fé que não
diverge da nossa, quando ouvimos as orações litúrgicas com que celebrais tão
alto Mistério, quando admiramos o vosso culto eucarístico e lemos os vossos
teólogos, ao expor e defender a doutrina a respeito deste augustíssimo
Sacramento.
78. Animado pela dulcíssima
esperança de ver derivarem, do aumento do culto eucarístico, muitos bens para
toda a Igreja e para todo o mundo, a vós, Veneráveis Irmãos, aos sacerdotes,
aos religiosos, a todos aqueles que vos prestam colaboração, e a todos os fiéis
confiados aos vossos cuidados, concedemos, com grande efusão de amor, a bênção
apostólica, como penhor das graças celestiais.
Dado em Roma, junto de São Pedro,
na festa de São Pio X, 3 de Setembro de 1965, ano terceiro do nosso
pontificado.
PAULUS PP. VI
Notas
1. Constit. De sacra Liturgia, n.
47; AAS 56,1964, p.113.
2. Jo 6,55.
3. Cf. Jo 17,23.
4. Carta encicl. Mirae Caritatis;
Acta Leonis, XIII, XXII,1902-103, p. 122.
6. Summa Theol. III, q. 75, a . I.
8. Jo 6,61-69.
9. Santo Agostinho, Contra Julianum,
VI, 5, II; PL 44, 823.
10. De civit. Dei, X, 23; PL 41.
300.
11. Constit. dogm. De Fide
Catholica. c. 4.
12. Cf. Conc. Trid., Doctrina de
Ss. Missae Sacrificio, c. 1
13.Cf. Ex 24, 8.
14. Lc 22,19-20; Cf. Mt 26,26-29; Mc 14,22-24.
15. At 2,42.
16. At 4,32.
17. 1Cor 11,23.
18. 1Cor 10,16.
19. Cf. Ml 1,11.
20. Conc.Trid., Doctrina de Ss. Missae Sacrificio, c. 2.
21. Catech. 23 (mist. 5), 8,18; PG 33,1116.
22. Confess. IX,12, 32; PL 32, 777; Cf. ibid.
9,11, 27; PL 32, 775.
23. Cf. Serm.172, 2; PL 38, 936;
Cf. De Cura gerenda pro mortuis, 13; PL 40, 34. 593.
24. Cf. Santo Agostinho, De
civit. Dei, X, 6; PL 41, 284.
25. Cf. Carta Enc. Mediator Dei;
AAS 39,1947, p. 552.
26. Cf. Const. Dogm. Lumen Gentium, c. 2, n.11; AAS 57,1965,
p.15.
27. Cf.
ibid, c. 2, n.10; AAS 57,1965, p.14.
28. Const. De Sacra Liturgia, c.
1, n. 27; AAS 56,1964, p.107.
29. Cf. Pontif. Rom.
30. Cf. AAS 56,1964, pp.100-101.
31. Santo Agostinho, In Ps. 81,1;
PL 37,1081.
32. Mt 18,20.
33. Cf. Mt 25,40.
34. Cf. Ef 3,17.
35.Cf. Rm 5,5.
36. Santo Agostinho, Contra Litt.
Petiliani, 3,10, 43, 353.
37. Santo Agostinho, In Ps. 86,
3; PL 37,1102.
38. Mt 28,20.
40. Egídio Rom., Theoremata de Corpore Christi,
theor. 50; Veneiis 1521, p. 127.
41. Santo Tomás, Summa Theol. III, q. 73, a . 3 c.
42. Cf. Conc.Trid., Decr. De SS. Euchar,
c.3.
43. Pio XII, Carta Enc. Humani
Generis; AAS 42,1950, p. 578.
44. Decr. De SS. Euchar., Proem.
e c. 2.
45. Didaquê, 9,1; Funk, Patres
Apostolici, l, 20.
46. Epist. ad Magnum, 6; PL 3,1189.
48. Santo Inácio M., Epist. ad Smyrn., 7,1; PG
5, 713.
50. Decr. De Ss. Euchar., c. 1.
51. Cf. Carta Enc. Mirae
Caritatis; Acta Leonis XIII, vol . XXII,1902-1903, p.123.
52. Cf. Conc.Trid., Decr. De Ss.
Euchar., c. 4 e cân. 2.
53.Catech., 22,9 (myst. 4); PG 33,1103.
54. De prodit. Iudae, homil.1,6; PG 49, 380; cf
In Matth., homil. 82,5; PG 58, 744.
56. De myster., 9, 50-52; PL 16, 422-424.
57. Mansi, Sacr. Concil. nova et ampliss.
collectio, XX, 524D.
58. Constit. Auctorem fidei, 28
Agosto 1794.
59. Alocução de 22 de Set. de
1956; AAS 48,1956, p. 720.
60. AAS 57,1965, pp. 588-592.
62. Tradit. Apost., ed. Botte, La tradition
apostolique de St. Hippolyte, Münster 1963, p. 84.
63. Cf. In Exod. fragm.: PG 12,391.
64. De spectaculis: CSEL III3, p.
8.
65. Epist. ad Calosyrium: PG 76,1075.
66. Cf. Basil., Epist. 93: PG 32,
483-486.
67. Santo Agostinho, In Ioann.
tract., 26,13; PL 35,1613.
68. Decr. S. Congr. Concil., de
20 de Dez. de 1905, aprovado por S. Pio X; AAS 38,1905. p. 401.
69. Cf Jo 1,14.
70. Cf. Col 3,3.
71. Cor 8,6.
72. Cf. Santo Agostinho, De Gen.
ad litt., XL 15,20; PL 34, 437.
73. Cf. lCor 1,10.
74. Lc 1,78.
75. Jo 6,48 ss.
76. Mt 6,11.
77. 1 Rs 19,8.
78. Sl 77,25.
79. Decr. De Ss. Euchar., c. 8.
80. Cf. Jo 17,20-21.
81. Cf. lCor 10,17.
82. CIC, cân. 801.
83. Santo Inácio, Epist. ad Philad., 4; PG
5,700.